Avalanche de imprensa internacional, motivada pelo lançamento mundial de "Archivo Pittoresco", nas lojas a partir de hoje.
Eis a apresentação do disco:
Regressa à edição, Lula Pena, 20 anos depois da ida a estúdio que a conduziu a “Phados” (Carbon 7, 1998), o seu primeiro disco, e no momento em que decorrem sete desde as sessões de gravação que deram origem a “Troubadour” (Mbari, 2010), o segundo. E, de certa forma, através deste “Archivo Pittoresco”, renova-se o acesso a um método de trabalho que, como as erupções vulcânicas, parece transformar a canção naquele material incandescente que se solidifica apenas na fase de projeção. Isto é, que até ao momento de emissão dá mostras de permanecer na mente da sua intérprete sem forma e volume definidos, com os seus constituintes indivisíveis em movimentos aproximadamente aleatórios, como numa dança.
Claro que tudo isto resulta de uma primeira impressão, pois a arte de Lula Pena não se resume a entropia ou a uma espécie de intuição ingénita, nem tão-pouco a cantora pratica a improvisação livre, embora se torne impossível refletir acerca da música que faz sem pedir emprestado àquilo que por hábito se escreve a respeito de músicas diferentes da sua. Estará, quiçá, próxima da filosofia de Cecil Taylor, quando o mestre da música indeterminada ou, no mínimo, sem grande premeditação, afirmava simplesmente: “Procuro uma nota musical de que goste ou que me dê prazer; depois, parto para outra; e assim sucessivamente.” Enfim, a única verdade incontestável é que cada registo de Lula é como um íman para figuras de estilo.
Nessa perspetiva, é riquíssimo o repertório reunido em “Archivo Pittoresco”. Lula tanto respiga canções quanto as constrói de raiz, mas quase sempre põe a descoberto as partes visíveis e invisíveis da demanda que a levou a cada uma delas. Ou, pelo menos, lança pistas nessa direção. E ainda que sugira estruturas ligeiramente mais pesadas do que as normalmente suportadas na narrativa fechada de um disco, a primeira maravilha decorrente da sua ação é a naturalidade com que tudo se desenrola, a maneira como as mais variadas melodias fluem de um instante ao outro, de como as curvas e contracurvas rítmicas surgem no momento certo, de como as fontes mais díspares resultam em algo tão integrado, coeso, unificado e sincero.
Como ela diz: “A partir de um repertório que corre livre e abertamente, cria-se um organismo vivo que se comporta de modo distinto em cada atuação. Além do mais, os fragmentos que temporariamente o incorporam podem vir a desenvolver laços ilimitados entre si. Assim, sujeita a um conjunto específico de circunstâncias, a propriedade fundamental do que é aqui ouvido e tocado revela apenas uma entre muitas leituras possíveis, como um instantâneo tirado por acaso.” São elementos que Lula coloca em trânsito e que se ouvem num estado de transe. Como se tivesse de estar previsto na arquitetura de um álbum espaço para qualquer coisa de instável que não só não lhe compromete a sustentação como, em rigor, a garante.
Lula deixou-se inspirar ainda pela estética do Pitoresco de meados do século XVIII, inícios de XIX, quando certa pintura paisagística passou a incluir “componentes como ruínas, assimetrias várias, texturas dissonantes, sombras e irregularidades”. Enfoque que tentou transferir para a música valorizando “essa ideia de andar à deriva por lugares sem fronteiras fixas, vagueando por várias línguas e sons como quem vai ao encontro da nascente do inconsciente coletivo. Destino e destinação fundindo-se numa coisa só”, acrescenta, trazendo à memória o que dizia por alturas de “Troubadour”, quando lembrava que a palavra trovar, ou seja, fazer ou cantar trovas, queria também dizer “encontrar” (trobar) no dialeto provençal.
Hoje, não obstante apontar para algum tipo de dialética com a conjugação que estabelece entre os objetos que vai descobrindo, diz-se “mais interessada no que as coisas têm em comum do que naquilo que as distingue”, com vista a que o seu canto nómada assente na “coluna vertebral” de um corpo que vê sob o domínio de todos, e que é o da própria música. O de uma música cuja dimensão ideológica não obedece a nenhum cânone, conceito ou categoria que não o da poesia. E que, por isso mesmo, só pela poesia se liberta. Assista-se a um concerto de Lula e logo se terá noção da extensão do seu archivo, com textos em sânscrito, provençal ou lingala a provarem o quanto busca uma língua franca, na dupla aceção da palavra.
Marc Hollander, fundador da Crammed, que edita “Archivo Pittoresco”, apresenta-a como alguém que age de acordo com uma série de princípios muito próprios, “na vida, bem como na música”, esclarece. “A voz de Lula Pena causa assombro e comoção, a sua técnica à guitarra é única. E é quase xamânico o seu jeito de se tornar una com o seu instrumento ao cantar estas longas peças errantes em que madeira, tripa, palavra, corpo, sopro e voz se transformam num fabulosa fera sobrenatural.” A mesmérica atração que a sua declaração deixa entender nasceu em outubro de 2014, quando Marc assistiu fascinado ao showcase de Lula no Womex, a feira internacional de música do mundo. Como sempre, com Lula, o resto é estória.
“Archivo Pittoresco”, canção a canção, por Lula Pena
Eis a apresentação do disco:
Regressa à edição, Lula Pena, 20 anos depois da ida a estúdio que a conduziu a “Phados” (Carbon 7, 1998), o seu primeiro disco, e no momento em que decorrem sete desde as sessões de gravação que deram origem a “Troubadour” (Mbari, 2010), o segundo. E, de certa forma, através deste “Archivo Pittoresco”, renova-se o acesso a um método de trabalho que, como as erupções vulcânicas, parece transformar a canção naquele material incandescente que se solidifica apenas na fase de projeção. Isto é, que até ao momento de emissão dá mostras de permanecer na mente da sua intérprete sem forma e volume definidos, com os seus constituintes indivisíveis em movimentos aproximadamente aleatórios, como numa dança.
Claro que tudo isto resulta de uma primeira impressão, pois a arte de Lula Pena não se resume a entropia ou a uma espécie de intuição ingénita, nem tão-pouco a cantora pratica a improvisação livre, embora se torne impossível refletir acerca da música que faz sem pedir emprestado àquilo que por hábito se escreve a respeito de músicas diferentes da sua. Estará, quiçá, próxima da filosofia de Cecil Taylor, quando o mestre da música indeterminada ou, no mínimo, sem grande premeditação, afirmava simplesmente: “Procuro uma nota musical de que goste ou que me dê prazer; depois, parto para outra; e assim sucessivamente.” Enfim, a única verdade incontestável é que cada registo de Lula é como um íman para figuras de estilo.
Nessa perspetiva, é riquíssimo o repertório reunido em “Archivo Pittoresco”. Lula tanto respiga canções quanto as constrói de raiz, mas quase sempre põe a descoberto as partes visíveis e invisíveis da demanda que a levou a cada uma delas. Ou, pelo menos, lança pistas nessa direção. E ainda que sugira estruturas ligeiramente mais pesadas do que as normalmente suportadas na narrativa fechada de um disco, a primeira maravilha decorrente da sua ação é a naturalidade com que tudo se desenrola, a maneira como as mais variadas melodias fluem de um instante ao outro, de como as curvas e contracurvas rítmicas surgem no momento certo, de como as fontes mais díspares resultam em algo tão integrado, coeso, unificado e sincero.
Como ela diz: “A partir de um repertório que corre livre e abertamente, cria-se um organismo vivo que se comporta de modo distinto em cada atuação. Além do mais, os fragmentos que temporariamente o incorporam podem vir a desenvolver laços ilimitados entre si. Assim, sujeita a um conjunto específico de circunstâncias, a propriedade fundamental do que é aqui ouvido e tocado revela apenas uma entre muitas leituras possíveis, como um instantâneo tirado por acaso.” São elementos que Lula coloca em trânsito e que se ouvem num estado de transe. Como se tivesse de estar previsto na arquitetura de um álbum espaço para qualquer coisa de instável que não só não lhe compromete a sustentação como, em rigor, a garante.
Lula deixou-se inspirar ainda pela estética do Pitoresco de meados do século XVIII, inícios de XIX, quando certa pintura paisagística passou a incluir “componentes como ruínas, assimetrias várias, texturas dissonantes, sombras e irregularidades”. Enfoque que tentou transferir para a música valorizando “essa ideia de andar à deriva por lugares sem fronteiras fixas, vagueando por várias línguas e sons como quem vai ao encontro da nascente do inconsciente coletivo. Destino e destinação fundindo-se numa coisa só”, acrescenta, trazendo à memória o que dizia por alturas de “Troubadour”, quando lembrava que a palavra trovar, ou seja, fazer ou cantar trovas, queria também dizer “encontrar” (trobar) no dialeto provençal.
Hoje, não obstante apontar para algum tipo de dialética com a conjugação que estabelece entre os objetos que vai descobrindo, diz-se “mais interessada no que as coisas têm em comum do que naquilo que as distingue”, com vista a que o seu canto nómada assente na “coluna vertebral” de um corpo que vê sob o domínio de todos, e que é o da própria música. O de uma música cuja dimensão ideológica não obedece a nenhum cânone, conceito ou categoria que não o da poesia. E que, por isso mesmo, só pela poesia se liberta. Assista-se a um concerto de Lula e logo se terá noção da extensão do seu archivo, com textos em sânscrito, provençal ou lingala a provarem o quanto busca uma língua franca, na dupla aceção da palavra.
Marc Hollander, fundador da Crammed, que edita “Archivo Pittoresco”, apresenta-a como alguém que age de acordo com uma série de princípios muito próprios, “na vida, bem como na música”, esclarece. “A voz de Lula Pena causa assombro e comoção, a sua técnica à guitarra é única. E é quase xamânico o seu jeito de se tornar una com o seu instrumento ao cantar estas longas peças errantes em que madeira, tripa, palavra, corpo, sopro e voz se transformam num fabulosa fera sobrenatural.” A mesmérica atração que a sua declaração deixa entender nasceu em outubro de 2014, quando Marc assistiu fascinado ao showcase de Lula no Womex, a feira internacional de música do mundo. Como sempre, com Lula, o resto é estória.
“Archivo Pittoresco”, canção a canção, por Lula Pena
Poema/Poème: um texto meu, em francês, em que o som, o significado e a grafia das palavras se combinam para sugerir diversas perspetivas semânticas, outras possibilidades interpretativas. Seguido de um poema cheio de evidências surpreendentes do surrealista belga Louis Scutenaire, “Je ne suis pas d’une grande pauvreté”. São ambos musicados por mim.
Pesadelo da história: uma música que fiz a partir de versos de Ronaldo Augusto, um poeta brasileiro contemporâneo, que remetem para a questão da herança africana. Diz: “O negro que sou, inclusive em alma”, dirigindo-se às diversas escravaturas a que nos submetemos, incluindo a de nós mesmos.
Ojos, si quereis vivir: uma canção que remonta ao século XVII, ou mesmo antes, de autor ou autores anónimos, aqui numa melodia original, que nos diz basicamente que o mundo dos sentidos não esgota o sentido que há no mundo, com versos como “Que entra por los ojos/ Por ellos ha de salir” e “Cielo, si quereis oyr/ Abra la oreja a mi duelo/ Que Amor, que oye del cielo/ En ello ha de salir”.
Las penas: apesar de surgirem indexadas em CD, a minha intenção é que as canções de “Archivo Pittoresco” se ouçam como uma só, e vejo a mexicana ‘Las penas’ como um prolongamento da europeia ‘Ojos, si quereis vivir’. Adapto aqui uma gravação antiga, feita sob a égide de Thomas Edison nos anos 20 do século passado. De autores anónimos, foi lançada para o mercado fonográfico como ‘Que partes el alma’ e, de certo modo, trata da submissão total aos sentidos. Ou seja, no disco, a noção mais corpórea do desejo surge imediatamente após uma canção consagrada às coisas do espírito.
Rose: uma canção do compositor e cantor baiano Ederaldo Gentil, falecido em 2012. Rose é Rosa, o nome de uma pessoa mas também o de uma flor, claro, e, mantendo-nos atentos à fonética do tema, aquele “O que é que houve com Rose, hein?” transforma-se facilmente em “o que é que ouve com rose” ou, melhor ainda, em “o que é que ouve com/ ouse”. Aí, por via da transmutação, remete para o atrevimento, para a ação, reforçando um significado ambíguo.
Ausencia: um tema de Violeta Parra, grande compositora, intérprete e vulto da etnomusicologia chilena, artífice fundamental do reavivar e reinventar de modos folclóricos latino-americanos. A ausência é um paradoxo. A nossa mente e as nossas memórias nunca nos permitem estarmos completamente ausentes. Quanto atuo tento estar ao mesmo tempo presente e ausente. Preferia não estar em palco, mas estou. Este processo obriga-me a pensar e a expressar-me em tempo real, a reagir ao momento. E aí, sim, estou e não estou presa a cada instante. E é surpreendente e maravilhoso de cada vez.
Pes mou mia lexi: uma canção da autoria de Manos Hatzidakis, ilustre compositor grego, estreada em 1961 no filme “Alloimono stous neous”. Quer dizer: diz-me a palavra – ou, talvez, dai-me a palavra. Adotei-a há uns anos, quando a Grécia foi o primeiro país da União Europeia a sofrer os efeitos da crise económica global, chegando ao colapso financeiro. De certa forma quis relembrar que lexicamente somos todos gregos.
A diosa (No potho reposare): um tradicional sardenho sobre o amor vivido à distância, no dialeto local, adaptado pelo compositor Giuseppe Rachel a partir de um poema de Salvatore Sini. Toquei na Sardenha há muitos anos e ouvi-o a ser cantado. Ficou-me na cabeça durante duas décadas, ainda que só me recordasse de um par de versos seus. Agora, senti que tinha de ir em busca do seu significado. Apropriadamente começa assim: não posso repousar.
O ouro e a madeira: outra vez Ederaldo Gentil. A sua letra diz que a “Ostra nasce do lodo/ gerando pérolas finas”, puro código alquímico. Além de que possui um elemento de reducionismo, em que se toma o todo pela parte, que, entre muitas outras, remete para as questões de atuação e alinhamento a que já aludi: “Não queria ser caminho/ porém o atalho// Muito menos ser o campo/ me bastava o grão/ Não queria ser a vida/ porém o momento/ Muito menos ser concerto/ apenas a canção”.
Cantiga de amigo: um tema de Elomar, cantor e compositor brasileiro que, de modo orgânico, transferiu o romanceiro medieval para o sertão. Trata do amor não correspondido e é uma referência à tradição galaico-portuguesa, do tempo dos trovadores. O amor é livre e selvagem mas também místico e simbólico e, no fundo, por intermédio desta canção, remeto para os diferentes níveis em que ele se manifesta.
Deus é grande: Allahu Akbar, etc. Musiquei estes versos de Bénédicte Houart, poeta portuguesa contemporânea nascida na Bélgica, originalmente publicados num livro seu chamado “Reconhecimento”. Não é tanto acerca da religião no sentido institucional quanto no etimológico, que fala da junção do prefixo latino re com ligare, que significa unir, atar, etc., levando ao “voltar a ligar”. É Deus enquanto plataforma, rede. Contudo, nesta perspetiva, não crer pode revelar-se a atitude mais religiosa na medida em que nos leva a procurar por nós próprios todo o tipo de ligações entre as coisas.
Breviário: ou um resumo, um sumário. É sobre a “vinda do grande barco” a Breves, na ilha de Marajó, foz do Amazonas, mas igualmente acerca da chegada a terra de quem viaja por um corpo de água. O que se passa realmente nessa membrana entre os elementos? O que se altera? São palavras da destacada ensaísta e professora brasileira Jerusa Pires Ferreira musicadas por mim. Jerusa foi desafiada a redigir um poema com base numa fotografia da vila tirada de um barco, com a estátua de Nossa Senhora de Santa Ana em primeiro plano, e daí nasceu “Breviário”, a sua forma de conferir outra vida a esse retrato.
Come wander with me: este tema vem diretamente da “Twilight Zone”. É, aliás, o título de um episódio da série, emitido em 1964, em que surge pela voz de Bonnie Beecher. Foi escrito por Anthony Wilson e musicado por Jeff Alexander. Costuma ser o princípio dos meus espetáculos, como que atraindo o público para que siga comigo pelas paisagens errantes das canções, atravessando mundos. Agora, no disco, coloquei-a no fim, quiçá intencionalmente, como quem convida quem o escuta a ir a um concerto meu e, com sorte, passar pela experiência de saltar de dimensão e comungar desse ritual com outra propriedade.
Lula Pena ao vivo:
28.01 Teatro das Figuras, Faro (PT)
03.02 Ancienne Belgique Concerts, Brussels (BE)
17.02 Festival Cortex, Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra (PT)
19.02 Teatro da Vista Alegre, Ílhavo (PT)
07.03 Studio L’Ermitage, Paris (FR)
11.03 Cafe OTO, London (UK)
12.03 Cafe OTO, London (UK)
13.03 Women in (e)Motion Festival, Radio Bremen, Bremen (DE)
30.03 Quintas de Leitura, Teatro Campo Alegre, Porto (PT)
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