sexta-feira, 8 de maio de 2015

MÚSICA COM~TRADIÇÃO









Quando o Tempo se Quer Pousar

O que faz um grupo musical franco-belga, e radicado na Bélgica, que tem como base primordial do seu trabalho a música portuguesa de raiz tradicional, os seus cantautores mais emblemáticos (nomeadamente José Afonso e Sérgio Godinho) ou o fado? Faz o que fazem, porque é deles que se fala aqui, os Com~Tradição: uma música portuguesa, de certeza, mas aberta ao mundo e nela integrando outras sonoridades, do jazz à bossa-nova, da chanson à música árabe e indiana. Uma música que olha para Portugal ao mesmo tempo de perto e de longe, com a proximidade de quem ama o seu povo e as suas gentes mas com o distanciamento crítico que a diáspora pode e deve dar.

Mas, para se perceber quem realmente são os Com~Tradição, o melhor é contar a sua história desde o princípio. E no princípio está Rui Salgado, músico, cantor, compositor e letrista portuense que terminou o curso de jazz, especializando-se em contrabaixo, na Escola Superior de Música do Porto. Em 2006, Rui trocou a Invicta pela cidade de Leuven, nos arredores mas já de cultura flamenga, de Bruxelas, onde gravou um álbum, “Conto”, com o grupo de jazz Bansuri Collective. Lançado em 2008 pela editora Mogno Music, o disco venceria um importante concurso musical da Bélgica, o Brussels Jazz Marathon, mas Rui sentiu a necessidade de começar a fazer uma música mais acessível e, ao mesmo tempo, mais próxima das suas raízes portuguesas. E, por um acaso do destino, um pequeno concerto na escola em que Rui dava aulas de música, e para o qual convidou a cantora belga de origem portuguesa Nicole Cangueiro, professora de inglês e holandês na mesma escola, transformar-se-ia no embrião que daria origem aos Com~Tradição.

«Nesse concerto de fim-de-ano que nos foi sugerido pelo director da escola», conta Rui Salgado, «tivemos que encontrar um terreno comum. E qual era esse terreno? Filha de emigrantes portugueses, a Nicole conhecia bem os fados da Amália Rodrigues. E foi isso que nós apresentámos: fados da Amália, nomeadamente o “Povo que Lavas no Rio” e o “Gaivota”». Daí até às actuações regulares num restaurante e casa de fados de um português, Chez Luís, no bairro de Saint-Gilles, «que é o bairro mais português de Bruxelas», foi um passo. Nessa altura, Rui e Nicole ainda não eram os Com~Tradição, mas com a entrada de mais um músico, o violinista e contrabaixista belga Sébastien Taminiau, o núcleo daquilo que viria a ser o grupo estava desde então encontrado: «O Sébastien era meu colega noutro grupo, o Diab Quintet, onde tocava violino, e eu desafiei-o a integrar o grupo, ouvindo muita música portuguesa mas interpretando-a à sua maneira».

A partir de 2011, o trio de Nicole, Rui e Sébastien actuou no Chez Luís uma vez por mês durante dois anos. E essa aproximação cada vez mais íntima à música portuguesa contribuiu para que o projecto Com~Tradição começasse a tomar a forma que teve depois e que tem agora: uma música que apesar de nela conter fado(s), leva o fado para outros territórios e, nos temas originais do grupo, visita muitos outros territórios para além do fado. E a vontade de Rui Salgado em compor temas originais que viriam a ser interpretados por ele e pelos seus dois companheiros, rapidamente resultou no corpus de canções que estão agora registadas neste seu álbum de estreia. “Quando o Tempo se Quer Pousar”, editado na Bélgica em 2014 e que chega agora a Portugal, é uma edição de autor apoiada pela Embaixada de Portugal em Bruxelas e pelo Instituto Camões.

Um álbum em que o fado está presente, sim, mas enquanto fado transformado, reinventado e absolutamente actual: oiçam-se as suas releituras dos clássicos “Ouça Lá, Ó Senhor Vinho” (numa versão gaiata e alegre), “Gaivota” (um fado-jazz melancólico e belíssimo) e o luso-brasieiro “Barco Negro” (onde uma bansuri, a flauta indiana, aparece por ali a fazer o fado bailar). Mas um álbum em que também estão presentes muitas outras músicas: as sombras boas e tutelares de Sérgio Godinho (“Vela Acesa”, “Portas Fechadas”), do lado mais “africano” de José Afonso (“Mãos Atadas”), da música tradicional portuguesa (“Folclore das Raizes”) ou da bossa-nova (“O Sol”), ao lado do jazz e da chanson franco-belga de Brassens e Brel, da música árabe e do manouche cigano. Ou a súmula mais-que-perfeita de tudo isto que é “Âncoras do Tempo”. E um álbum em que as letras dos originais de Rui Salgado reflectem esse olhar de quem está fora – de Portugal – mas que continua atento ao que nele – Portugal -- acontece. Letras ora mais intimistas e pessoais, ora mais paisagísticas e nostálgicas (cujos melhores exemplos são o “Curso do Rio” e “O Folclore das Raízes”, que celebram as origens de Rui e Nicole: as margens do Douro), ora marcadamente políticas e abertamente interventivas (“Mãos Atadas”).

Inesperado e inovador, coerente e aventureiro, “Quando o Tempo se Quer Pousar” é um álbum de nova música portuguesa – apesar das suas raízes mais ou menos antigas – que já foi apresentado em Portugal, Bélgica, França e Alemanha e que vai este ano continuar a viajar por vários palcos portugueses e internacionais para provar, mais uma vez, que como dizia Gustav Mahler, “tradição é a transmissão do fogo; não a veneração das cinzas”.
 





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