sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

STRAY APRESENTA NOVO DISCO

 











Um exercício: liguem-se ao Bandcamp da Monster Jinx, e encontrarão remotos artefactos creditados a Monstro Robot e Stray. O trabalho título do embrionário projecto em que a voz de Stray encontrava os beats de DarkSunn e os cortes certeiros de SlimCutz remonta já a 2009, mas O Diabo, desta vez creditado solitariamente a Stray, conta já uma boa década. O tempo – bem como o título – é aqui importante. É que o alter-ego de Pedro Tavares está de volta para reclamar um pedaço singular do presente. RAFEIRO, a nova criação, sucede assim a esse arcano O Diabo (2011) e ainda a Coraçãozinho de Satã (2013) além de pontuais contributos para múltiplos outros projectos.

Ora diabos e satãs é gente que não falta na discografia de outro “stray dog” bem conhecido, o senhor Tom Waits: o homem que deu vida musical ao “Black Rider”, que já deu tiros na lua, que nunca quis crescer, que já mergulhou lá fundo no buraco, que sempre sentiu simpatia por cães de chuva, nunca se coibiu, como bom herdeiro que sempre assumiu ser dos blues, de cantar sobre o mafarrico.

Tal como Tom Waits, que encontrou nas raízes da Broadway, no jazz, nos blues, no vaudeville, no country e na folk mais remotas, na música das feiras e nas imagens sépia de outros tempos fontes para uma aparentemente inesgotável inspiração, povoando as suas canções de prostitutas e bandidos, de marinheiros e anões, de palhaços e domadores, de aventureiros e alcoólicos, também Stray resolveu usar este novo trabalho como uma oportunidade para revitalizar marcas do “linguajar” nortenho, transmontano e beirão: “Estas influências textuais são, por um lado, marcadamente idiossincráticas dada a minha ascendência e, por outro, fruto do meu apreço por autores literários como Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga, cuja produção artística homenageia o mesmo sentido cultural que me interessa — aquele que é despido de formas académicas e que, mais do que se desenvolver num sentido institucional, simplesmente brota das vidas, dos costumes e dos folclores locais sem outras pretensões”.

Com a voz envolta na névoa que emanava de outros tempos, como se o disco tivesse sido gravado ao vivo numa velha roadhouse, algures nos arredores de Tupelo. E escutam-se pianos, ruídos de caminhos de ferro, cacofonias de ferro-velho, realejos de feira, tubas e harmónicas, trovoadas e poeira, e cadências vocais de “chain gang” de beira de estrada ao serviço de uma prisão no Mississippi.

Rafeiro é a melhor homenagem jamais feita em território nacional a Tom Waits, simplesmente porque não o procura imitar, antes se inspira nas marcas singulares do seu universo para, transplantando tudo para o nosso norte rural de cães vadios e coveiros, de personagens sombrias, caveiras, fogueiras e aguardente, projectar o nosso próprio imaginário perdido, o que se fazia nas nossas remotas infâncias de saltimbancos e homens do saco, de carvoeiros e amoladores e gente que cavava na terra as últimas moradas dos nossos avós. Gente de outro tempo, observada a partir de um agora que nunca foi tão criativo, nem tão múltiplo.

E a isto Stray acrescenta uma voz moldada por fumo e medronho, carregada de grão como as fotografias dos bisavós, uma voz arranhada pela poeira de estradas não pavimentadas que vão dar a aldeias abandonadas. Uma voz grave, ultra-musical, cheia de personalidade e com palavras a condizer. São fantásticas as histórias a que oferece a sua voz de actor de método, homem de blues e de entrudos, de hip hop e de jazz, dos frios debelados por cavacas que queimam na fogueira. Este hip hop é vital porque recusa ser alinhado no que já se conhece, não temendo a evolução de se aproximar de um outro mundo. Cão danado abençoado com criatividade, este RAFEIRO solto por Stray

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