domingo, 21 de agosto de 2022

(RE)VIVER A ALDEIA AO SABOR DA MÚSICA PORTUGUESA

















Foi com redobrado prazer que  fomos de novo viver a aldeia depois de dois anos de paragem forçada. Ao pisar Cem Soldos o coração começou a bater mais acelerado. A nossa aldeia estava pronta para  durante quatro dias receber os bons sons da música portuguesa.

E foram quatro dias em grande que nos encheram a alma. O difícil foi dizer adeus a Cem Soldos, porque este é um festival muito particular. Por aqui passam artistas com mais nome, lado a lado com outros que estão a marcar a nova vida da música portuguesa. Por aqui, ouve-se uma amálgama de estilos, o que torna os Bons Sons mais peculiares. Temos pop, temos rock, temos hip hop, temos tradicional, temos fado e muito mais. Temos a música portuguesa toda dentro de uma aldeia.

E depois, temos muito que fazer, porque o Bons Sons não é só musica. É pensado para toda a familía. Para quem acaba de nascer e para aqueles a quem a vida já deu muito.

Depois de dois anos fora de nós, o festival fez pequenos ajustes. Uns mais certeiros que outros. Mas nada que tire a beleza de quem por ali passa. Este ano, menos palcos, e mais aldeia, com concertos pelas ruas. De louvar. O palco da música Portuguesa a Gostar Dela Própria a transitar de lugar, e nos dois primeiros dias num beco muito apertado. A rever.

Mas certo, certo é que não há festival como este, que cative quem lá vai a repetir a experiência. E o povo embrulha-se pacificamente com os habitantes locais, que os recebem tão bem.

Por tudo isto a música portuguesa agradece, por ser assim tão bem tratada...

1ª Dia

Este ano, o dia de concertos voltou a começar sempre na igreja às 14h30, no palco Carlos Paredes. O pontapé de saída da 11ª edição foi dado por Manel Ferreira que, nos encantou com sua guitarra acústica, repleta de influências flamencas.

Já na rua, e debaixo de um sol abrasador, descemos até ao palco Giacometti, para escutar Niki Moss, um moço que conhecemos dos Savana, que nos brindou com o seu pop, num concerto morno.

No palco da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, as Peixinhos da Horta, a primeira boa surpresa do festival. Duas meninas, a trabalharem as suas vozes, com muitos pedais de loops. Reinventam o tradicional, juntando aqui e ali, mais alguns instrumentos, caso das percussões, tocadas por Francisco Frutuoso. "Maresia", o primeiro single do duo é viciante. 

Já instalados no anfiteatro do festival, junto ao palco Zeca Afonso, assistimos à prestação de André Henriques, aqui sem os seus Linda Martini, a apresentar o seu primeiro disco a solo. Foi um concerto certeiro, que veio mostrar todo o talento do André para a escrita de canções que ficam a meio caminho entre o pop e o rock.

De volta ao Giacometti e sem esperar levamos um valente murro no estômago. Os Cancro brindam todos, com o primeiro grande concerto do festival. Foi bruto. Foi brutal. Tiago, o homem da voz, partiu tudo, claro está no bom sentido. E ninguém ficou indiferente ao rock do trio, onde a electrónica marca também forte presença.




















Viagem até à eira, ao palco António Variações, para ver Motherflutters. A jogarem em casa, o projecto que tem a sua inspiração no disco dos anos 70,  conseguiu agarrar o público, que não se fez rogado e bateu o pé, levantando poeira.

A seguir, um pouco mais ao lado, no Lopes Graça, os Acácia Maior levam-nos numa viagem até Cabo Verde, num concerto que nos aquece o coração e por onde vão passando algumas vozes convidadas, caso de Cachupa Psicadélica.

Ao cair da noite Omiri, ilumina a frontaria da igreja, com imagens filmadas, muitas delas com gente da terra, as quais vai entrelaçando com o tradicional que vai tocando. Um concerto que tem muito de singular, onde a tradição se reinventa, sem deixar de ser o que era.

Logo de seguida, no palco Lopes Graça, um furacão de nome Marta Ren. Esta menina não deixa nada por mãos alheias, e ladeada por um naipe de excelentes músicos, brinda todos os presentes com o seu funk e soul. Dona de uma voz gigante, Marta Ren deu um enorme concerto, que dificilmente vamos esquecer.




















A seguir uma caminhada até ao palco Zeca Afonso, que apenas com Rita Vian e o seu companheiro em cima das tábuas se encontra muito despido, andando a Rita um pouco perdida por ali. Com origens em Cem Soldos, Rita Vian, vem a casa mostrar as suas raízes eletrónicas, às quais dá um toque de fado, muitas vezes pela forma de cantar. Apesar de tudo, foi um concerto que conseguiu prender a atenção de muitos e passar aqui e ali muito rente à nossa pele.

No palco António Variações, os GROGnation vêm provar que o hip pop tem também lugar neste festival. E prova disso são as pessoas que nas primeiras filas sabiam a letras todas de cor. Foi uma prestação intensa, onde o coletivo se entregou até à última pinga de suor.

O primeiro dia fechou no palco João Aguardela com os José Pinhal Post-Morten Experience, a homenagearem o artista que dá nome ao projeto, que é hoje mais conhecido por culpa destes senhores. Música de baile, que comandou a dança dos corpos que abanavam e cantavam as canções.

2º Dia

O sábado, dia com lotação esgotada, abriu com Violeta Azevedo a inundar a igreja de Cem Soldos com a sua flauta mágica. Sons entre o ambiental e o experimental, a sossegar os corpos para mais um dia de concertos. Começo de dia sereno... e apaziguador...

Lá embaixo no palco Giacometti, Bia Maria tenta fintar o calor, com o seu som, que passeia entre a pop e o tradicional. Fim de concerto, com Bia Maria a viajar até ao palco A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, tocando a primeira música que gravou para esta plataforma, comandada por Tiago Pereira.

Chegados ao beco, somos confrontados com a música cigana de Emanuel & Toy Matos. E a festa foi bonita, com toda a gente a levantar-se e a dançar. Assim se provou que a cultura cigana tem espaço e merece ser mais descoberta.

Nas ruas de Cem Soldos ouvem-se os batuques dos Porbatuka, que não se limitam a descer a rua e a rufar, mas travam a espaços para pequenas performances. É emocionante ver que gente tão nova tem já tanto amor por esta arte.

Logo de seguida, à torreira do sol, no palco Giacometti, levamos com uma valente cuspidela de garage rock, trazida pelo trio Sunflowers. São sempre arrasadores, numa entrega mais uma vez total à causa do rock. Um grupo que nos dá sempre gozo ver, como se fosse a primeira vez
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Para acalmar um pouco, subimos até à eira para cumprimentar David Bruno e companheiros. Mais uma vez, um concerto, que doseia de forma brilhante, o hip hop, o kitsch e até o pimba, com letras super divertidas. António Bandeiras, David Bruno e Marco Duarte, agarram a plateia, que vibrou do princípio ao fim, mostrando-se conhecedor da obra de David Bruno.

No Lopes Graça, os Cassete Pirata, mostram que são cada vez maiores conseguindo por todo o recinto a trautear as suas canções. Este foi mais um dos grandes concertos deste festival a mostrar uma banda em ascensão, que nos tem brindado com algumas das melhores canções pop do cancioneiro nacional.

Já instalados junto ao palco Zeca Afonso, recebemos de braços abertos uma das maiores vozes do fado, Aldina Duarte. Foi arrepiante de bom, a prestação desta grande senhora, que nos brindou com a sua simplicidade. A voz de Aldina passou bem perto de nós e fez as emoções não terem medo de se exprimir. Um concerto que vamos recordar por muito tempo.














Para cima que se faz tarde, e Cabrita já espera por nós no Lopes Graça. João Cabrita é sem dúvida um dos grandes saxofonistas que temos por cá. Veio ao Bons Sons mostrar o seu primeiro disco em nome próprio, rodeado de mais alguns sopros e bateria, e acompanhado pelo seu filho nas teclas. Grande concerto, que mesmo não tendo uma voz, nem temas para cantar, conseguiu prender a atenção de todos.

No palco António Variações, tempo de reencontro com os Pluto e com algumas canções que nos deixam mais vontade de as ouvirmos novamente em casa. Pelo meio alguns temas que não figuram no disco. Foi bom ver que o som praticado por Manel Cruz e companheiros, tem ainda um lugar muito seu na música portuguesa. Por isso podem voltar, pois temos fome de vos ver assim.














No palco João Aguardela, a noite encerrou com a electrónica, mais pop dos Neon Soho, num concerto que não chamou muito a atenção dos presentes.

3º Dia

No terceiro dia ao entrarmos na igreja deparamos que quase junto ao altar cresceu uma árvore, que é também uma arpa e que tem campainhas nos ramos. Quem faz dela sair "música" é Fernando Mota. E assim se prova que o estranho e inesperado, pode causar em nós boas sensações. Um som que não é música, sem deixar de o ser, pois claro.

Ao chegarmos ao palco Giacometti, encontramos A Garota Não, que traz na bagagem o recente "2 de Abril", mas que a ele junta temas do primeiro disco. Foi um concerto super bonito, crivado de canções inteligentes e de um extremo bom gosto. Pop assim faz bem aos nossos dias. Mais um grande concerto em Cem Soldos.

Agora em frente ao Auditório de Cem Soldos, A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria brinda-nos com um concerto de João Francisco. O artista passeia por vários estilos, e munido da sua guitarra elétrica não consegue cativar o público, que não percebe qual o rumo que o artista quer seguir.  

Ao subir para o centro da vila, cruzamo-nos com o Grupo de Gaitas da Golegã, que inundam a aldeia com o seu tradicional, onde as gaitas de foles e as percussões se cruzam na perfeição.

Ao descerem até junto ao Palco Giacometti, O Grupo de Gaitas da Golegã quase se via impedido de passar, pois já eram muitos os que marcavam lugar para ver os Fado Bicha. O concerto dos Fado Bicha, é mais um que marca pela positiva o Bons Sons deste ano. Reinventam o fado, pegando até em alguns clássicos, lutando por causas que vão do racismo, à defesa dos direitos LGBT e às touradas. Foi uma prestação que começou no palco, logo o largou, inundado toda a multidão que assistia. Um concerto que foi também visualmente impactante.














Lá embaixo, no palco Zeca Afonso, os Siricaia, dão um bonito concerto, onde o rock e algum tradicional se casam da melhor maneira. Um som vibrante, com algumas letras muito bem humoradas.

Mais acima no Lopes Graça é a vez do reggae dos Terra Livre. Muitas vibes pelo ar, a fazerem o povo gingar a anca. Um belo coletivo de instrumentistas, ofereceu a todos um belíssimo concerto, que deixou vontade de os voltar a ouvir.

De regresso ao palco Zeca Afonso, temos dificuldade em chegar ao fundo. Muita gente à espera de ver Rui Reininho, mas sem saber o que as aguardava. Reininho trazia com ele o recente "2000 Éguas Submarinas", um registo mais experimental. E em palco tudo ganhou uma dimensão maior, ao ponto de o artista fazer uma piada com quem abandonava o recinto ao fim da primeira música. Foi um concerto para ouvidos experimentados, muito longe daquilo que vimos Rui Reininho fazer nos GNR e em nome próprio. Mas foi, temos de o dizer, um concerto enorme, servido por quatro músicos de excelência. E terminou com uma versão de Sete Naves, que mesmo para quem conhece o original só se chega lá por causa da letra.

Tempo agora para regressar ao Palco Lopes Graça, onde somos brindados com o folk rock de Sebastião Antunes & Quadrilha. Foi um concerto quente e cativante onde Sebastião Antunes misturou velhos clássicos, com temas do seu novo disco.

A fechar a noite na eira, Criatura e o Coro dos Anjos dão o melhor concerto deste festival, e provavelmente um dos melhores a que assistimos este ano. Pegam no tradicional, reinventando tudo de tal maneira, que quase deixa de o ser. Compostos por excelentes músicos, são esta noite acompanhados pelo Coro dos Anjos, o que dá outro colorido ao concerto. Na frente de palco Gil Dionísio, dá um show monumental, e quando a ele se junta o Edgar Valente a coisa ganha ainda maiores proporções. O homem da gaita, é uma outra mola desta engrenagem, e quando tem o seu momento, brilha mais que todas as luzes montadas no palco. Os Criatura são únicos. Gente de muito bom gosto, que transpira arte por todos os poros. 














4º Dia

O último dia abriu com Phole no palco Carlos Paredes. João Gigante presenteou todos com a sua arte de tocar concertina, mostrando até novas formas de encarar o instrumento. No último tema teve a companhia das Cantadeiras do Vale do Neiva, grupo que voltaríamos a ver mais tarde fora da igreja.

No palco Giacometti, Tyroliro, tenta agarrar o povo à sua frente, sem muito sucesso. Concerto com músicas tocadas quase sempre ao piano, e que só a metade teve a companhia de um baterista. A coisa aqueceu no último tema com a presença de uma bailarina que veio provar que não existe medo em ser diferente e assumir a sua opção sexual.

Descemos até ao Palco A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, para ouvir o duo MaZela, onde duas guitarras comandam a voz de Maria Roque. Som calmo, por vezes etéreo, a embrulhar-se com o calor da tarde, e por isso a dificultar a absorção das canções. No ar ficaram algumas boas ideias, e a vontade de os ver num outro espaço.

Frente à igreja de Cem Soldos lugar para as Cantadeiras do Vale do Neiva, que trazem na sua voz o canto tradicional. Momento tocante, que levou o público a implorar por mais temas.

Maria Reis sobe ao palco Giacometti, munida de uma guitarra acústica. Momentos depois tem a companhia da irmã que toca pandeireta. As duas juntas dão corpo às Pega Monstro. Mas aqui o que interessa são as canções da Maria, que apesar de acústicas não escondem por vezes um lado mais rock. O concerto foi quase sempre no mesmo registo e por isso muito morno.

Mais para baixo no palco Zeca Afonso, o encontro com as belas canções de André Júlio Turquesa. Uma excelente banda serve a voz poderosa de André, que vai soltando palavras, que são poesia.  Canções quase pop, que se absorvem com tanta certeza, o que as torna grandes.  Foi um belo concerto, para o final de tarde de segunda.

Na eira é tempo para receber os 5ª Punkada, banda formada por utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, aqui, e como tem acontecido recentemente, acompanhados, por Surma, Rui Gaspar e Victor Torpedo. Houve ainda lugar para um violino. A noite começou com o documentário que mostra alguns momentos da gravação do disco da banda. Serviu sobretudo para desbloquear as mentes mais conservadoras, a tal ponto que depois tiveram todo o público do seu lado a vibrar. É bonito ver o caminho que os 5ª Punkada estão a desbravar, ao conseguirem tocar em festivais desta envergadura.

Lá bem ao fundo, quase não conseguimos passar, tal é o mar de gente, vimos B Fachada, no Palco Zeca Afonso. Foi a maior enchente dos quatro dias neste palco, desta vez com as pessoas em pé. Apesar de sozinho em palco, B Fachada dá muito bem conta do recado. Super divertido, munido da sua guitarra elétrica, e da sua braguesa, desfila alguns dos seus maiores êxitos. E o público canta a plenos pulmões. Mais um dos grandes concertos desta edição dos Bons Sons.


 

 

 

 

 

 

 

 

 



No Palco Lopes Graça, Lena D'Água dá um enorme concerto, mostrando que ainda está aí para as curvas. Soube de maneira inteligente balancear a sua prestação, misturando os seus clássicos com temas mais recentes. A acompanhar a artista, alguns dos melhores músicos da nova geração da música portuguesa

 

Quase a fechar o Bons Sons o novo baile dos Bateu Matou, comandado por três baterias e duas vozes. Impossível não dançar, mesmo sendo o cansaço maior que nós. E assim se fez a festa, e se gastaram as últimas gotas de suor.

Para já, fica a eterna saudade da aldeia, que se reúne para oferecer esta festa. Foram quatro dias a provar que a música portuguesa está de boa saúde. Quatro dias de bons concertos. Uns melhores que outros, e onde tudo é possível acontecer. E é isto que faz do Bons Sons o melhor festival deste país. Onde entre as duas e meia da tarde e até perto das três da manhã se pode assistir a dezenas de concertos, sem haver atropelos e atuações coincidentes. E onde ainda há tempo para ver exposições, ouvir contos, concertos na garagem, passear de burro, disfrutar dos jogos do Hélder ou ir atá a feira comprar isto ou aquilo.

Resta dizer... até para o ano!! Longa se torna a espera...














Texto e Fotos Nuno Ávila

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