quinta-feira, 16 de março de 2023

MANUEL FÚRIA LANÇA TELEDISCO “MALTA QUE SE FOI” PARA ASSINALAR NOVA EDIÇÃO DE OS PERDEDORES (VINIL COR-DE-ROSA NUMERADA)

"TODAS MUDAVES

É um álbum que começa com «acabou». Aqui havia isto, acolá aquilo, diz Manuel Fúria, «e agora pai?», pergunta o filho. «Acabou», responde ele.

O elenco é de estabelecimentos comerciais. Uns acabaram para dar lugar a lugares novos, ainda que sem «charme»; outros acabaram no modelo antigo (cinemas lisboetas como o King, o Londres, o Monumental); outros acabaram em definitivo, como as lojas de discos e os videoclubes, que para algumas gerações se confundem com a sua memória afectiva, e para os mais novos serão talvez uma miragem vintage, ou coisa nenhuma.

A conclusão que Fúria retira disso é mais melancólica do que zangada, mais desamparada do que nostálgica, e nunca materialista. Uma vez que «tudo tem de terminar», decide, «eu tenho de me esvaziar», ou seja, o sujeito deve despojar-se das coisas, sem se despojar da ideia das coisas, fazendo um luto imperfeito, ou seguindo em frente. E, no entanto, o que fica na nossa cabeça é aquele «acabou, acabou», mofino como o corvo de Poe que crocita «nevermore».

Esse mote será glosado nas outras canções, sobretudo em «Malta Que Se Foi». O registo é autobiográfico («Foi em Setembro de 1998»), o texto quase lido, evocando companheiros que «se foram» demasiado cedo, gente da música, gente assombrada, este e aquele e aquela («reticências»), malta que era a dele, lembrada com mágoa e exaltação, «a minha malta que se foi, foi, foi», como ao sair do funeral de um amigo.

Nesses temas, e em «Bicicletas de Montanha» ou «Católico Menino Manco», o campo e a cidade, a juventude e o que vem depois, os amigos que já cá não estão, o vento que sopra onde quer (o do espírito, entenda-se), compõem a imagem de alguém que não se esquece, que faz questão de não esquecer, apesar de tantas perdas e de tantos perdedores, alguém que transporta todas as paisagens alguma vez vistas, como se ainda estivessem a ser vistas agora: «Somos feitos de terra / Do que a paisagem encerra / Das coisas que atrás, no carro /Vimos no vidro a passar».

Sá de Miranda escreveu: «Ó coisas vãs, todas mudaves. / Qual é o coração que em vós confia?». Mas Manuel Fúria confia, apesar da mutabilidade, apesar de tudo. Por um lado, isso deve-se à «disposição», à «inclinação», para falar «daquilo que amo». Por outro, a uma compreensão do tempo no longo curso, notória nos textos sobre o incêndio de Notre-Dame ou sobre os mártires cristãos de há séculos e de hoje: as coisas ardem, as pessoas vão-se, mas a ideia fica, seja essa ideia a fé, a identidade ou a consciência. E a lucidez ajuda, quando ajuda, a compensar a tendência para mitificarmos o que já se acabou: «E depois tive uma banda, / E depois fui o maior, / E depois o tempo fez, / O que o tempo faz melhor».

Desfigurador e transfigurador, é o tempo, e só o tempo, que empresta densidade à experiência, sentido à mudança. E enquanto isso as canções vão ritmando o nosso quotidiano, algumas «românticas» à inglesa, outras pulsantes, com guitarras ou teclados, há momentos «soul» ou LCD (e, ao meu ouvido, ecos de «19», de Paul Hardcastle, que não ouço desde os 19), versos de Adélia Prado, interpolações que são «espirituais» no sentido musical do termo, como na passagem de Dickens onde se vislumbra uma esperança contra toda a esperança."

Pedro Mexia

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