Não é um novo disco de Lavoisier. É, sim, o primeiro disco da série “Polifonias Singulares”, uma nova etapa no percurso de Patrícia Relvas e Roberto Afonso que parte da investigação para a experimentação alicerçada na dicotomia entre o tradicional e o contemporâneo.
“A revolução cultural não é [eu] poder ir tocar a mais sítios; a revolução cultural é [eu] ir aos sítios e encontrar música de lá”, defendia José Afonso. Alguns anos antes do início desta década, por intermédio de conhecidos, Patrícia e Roberto tiveram conhecimento da existência de um grupo de cantares polifónicos, com mais de meio século de existência, em São João do Campo do Gerês, uma pequena aldeia situada no coração do Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Em 2020, a partir de um convite da Associação Cultural Rural Vivo, um coletivo formado por pessoas naturais e residentes na aldeia, foi-lhes dada a oportunidade de conhecerem estas vozes perdidas no tempo de um Gerês místico e comunitarista. Reativadas pelo esforço comunitário e pelo impulso da Associação, trouxeram de volta as suas polifonias escondidas do mundo, motivadas pela salvaguarda do património oral. O grupo, hoje misto, outrora composto apenas por mulheres do Campo do Gerês, foi alvo da atenção — e de um único registo conhecido até hoje — do compositor português Fernando Lopes-Graça e do etnomusicólogo corso Michel Giacometti, integrando o LP “Minho”, de 1964, incluído na série Antologia Da Música Regional Portuguesa, Vol. III, editado por Arquivos Sonoros Portugueses.
Não existindo uma formação ou estrutura hierárquica delineada, o conhecimento do cancioneiro local foi-se transmitindo por tradição oral, de geração em geração, frequentemente passado por mães, mas também por familiares. Nos tempos antigos, impulsionadas pela musicalidade dos trabalhos comunitários e pelo quotidiano de proximidade com a música, as mulheres cantadeiras e conhecedoras da riqueza do cancioneiro era em maior número.
Atualmente, nas Cantadeiras do Campo do Gerês, podemos contar com cerca de dez mulheres detentoras da sabedoria oral das gerações passadas. Em 2011, reagruparam-se para reavivar a importância do grupo, ato que culminou com uma participação no Festival Andanças.
É desse primeiro contacto com as Cantadeiras, em 2020, que Lavoisier sentiu a necessidade maior de gravar alguns destes cantares e registar o potencial avassalador da sua transcendência artística. Olhando para o passado e para os trabalhos realizados por Virgílio Pereira e Gonçalo Sampaio (Cancioneiro Minhoto), mais tarde analisados e reinterpretados por Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, este álbum de carácter distintivo representa o legado já deixado por todas estas visões, com o confronto de novas posições e pensamentos que nunca perderão a sua importância, ainda que a presente realidade possa evocar novos paradigmas de análise à nossa música popular.
(...) estão muito longe do lugar-comum, são mesmo o contrário de lugar-comum, na sua invulgaridade, na sua raridade como documentos propostos à etnomusicologia, nas surpresas de vária ordem que oferecem à nossa curiosidade de conhecimento ou à nossa apetência de autenticidade. — Fernando Lopes-Graça, sobre o cancioneiro minhoto, in Antologia da Música Regional Portuguesa
“Polifonias Singulares” é uma série de discos-ensaio que marca uma nova etapa no percurso de Lavoisier, fruto de investigação e da vontade de conhecer, registar, partilhar e transformar, alicerçados na vontade de criar pontes entre o tradicional e a atualidade.
Neste primeiro volume da série, Lavoisier apresenta-se com o canto perdido das Cantadeiras do Campo do Gerês. Numa edição exclusiva em formato vinil, limitada a 300 cópias, “Lavoisier & Cantadeiras do Campo do Gerês — Polifonias Singulares Vol.1” apresenta, de um lado, as vozes das Cantadeiras do Campo do Gerês, registadas por José Fortes na Igreja de São João do Campo e, do outro, Lavoisier a recriar e a transformar essas mesmas cantigas, para que não se percam.
“Lavoisier & Cantadeiras do Campo do Gerês — Polifonias Singulares Vol.1” tem o apoio da DGArtes / Ministério da Cultura da República Portuguesa.
Patrícia Relvas e Roberto Afonso formaram os Lavoisier, em 2012, com o objetivo de explorar as raízes tradicionais da música portuguesa, através de uma guitarra elétrica e duas vozes. Desde então editaram já quatro álbuns – “Aí”, em 2022, “Miguel Torga por Lavoisier: Viagem a um Reino Maravilhoso”, em 2019, “É Teu”, em 2017, e “Projeto 675”, no ano de 2014.
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