Desta vez, o músico de jazz Carlos Martins (alentejano de gema) pensou mesmo diferente e conseguiu um projeto que junta, pela primeira vez na história da nossa cultura, o Cante Alentejano e os sons do Mediterrâneo com o Jazz, criando uma abordagem absolutamente original.
O novo trabalho é apresentado e lançado num grande espetáculo no CCB dia 17 de maio, com projeção ao vivo de fotografias de José Manuel Rodrigues, e os bilhetes já estão à venda, no local e em https://ticketline.sapo.pt/en/evento/vagar-cante-alentejano-82288
Mas, Vagar é o resultado do trabalho de um coletivo, que Carlos Martins foi desassossegando e juntando à sua volta.
A escrita musical foi acompanhada de perto por dois reputados cantadores alentejanos, Hugo Bentes (Serpa) e Pedro Calado (Évora), pelo escritor José Luís Peixoto, que escreveu algumas das letras e textos e pelo fotógrafo José Manuel Rodrigues (Prémio Pessoa), que ilustra a música e as palavras criando um campo visual onde as linguagens se conectam.
Estes artistas, todos alentejanos, pensaram em conjunto no que é ser alentejano no mundo hoje, transpondo para a música, as palavras e as imagens uma abordagem contemporânea do Cante. O Jazz é usado como elemento que inibe a normalidade para reinventar a tradição, sem medo de correr riscos, criando espaço para a liberdade na composição e arranjos.
Poderemos dizer que este projeto pioneiro abre caminho a outros outros olhares sobre as possibilidades de trabalhar músicas muito sedimentadas pelo tempo e espaço.
O Cante, Património Imaterial da Humanidade, é uma arte coletiva por excelência, tal como o Jazz. Neste sentido esta proposta aborda criativamente o diálogo entre o ego e a comunidade, tão complexo nos nossos dias, lançando pontes entre a composição, a improvisação e o Cante.
“Vagar” nasce da vontade de deixar uma obra global que proponha uma nova abordagem ao Cante Alentejano com todas as suas influências, no seu alcance geográfico e espiritual. Servirá o projeto como laboratório para a construção de um novo repertório assente nas raízes do Cante Alentejano.
A ideia central de composição parte de uma visão cosmopolita da tradição alentejana da respiração dos espaços e dos tempos, numa certa lassidão, na luz extrema e nos contrastes de sombra, na generosidade e em paisagens sonoras que nos reaproximem de uma vida consciente das diferentes ecologias.
A ambição é assumida: pretende-se que este projeto disruptivo fique registado para memória futura, através de um CD e de um registo documental (textual, vídeo e fotográfico online), a ser partilhado também através de espetáculos ao vivo, que permitam piscar o olho e captar novos públicos e novos praticantes do Cante e do Jazz.
Para Carlos Martins,
“o maior desafio foi escrever música que contivesse em si mesmas pistas para os códigos humanos ancestrais sob o prisma da improvisação ou de uma certa liberdade interpretativa e democrática que dela advém.
Vagar é fruto da vontade de deixar uma obra geoculturalmente referenciada e ainda assim aspirando ao universalismo, que propõe uma nova abordagem ao Cante Alentejano, no seu enquadramento Mediterrânico, tendo em conta o seu alcance geográfico e espiritual, com todas as suas influências, como inspiração para a construção de um repertório em que através da tradição se possam arriscar novos caminhos.
A ideia central de composição inspira-se na tradição alentejana da respiração que sustenta o vagar, dos espaços vastos, do mar, da planície, dos tempos das gentes, da luz e dos contrastes de sombra, da fraternidade e da construção humanista e criativa do mundo.”
E José Luís Peixoto acrescenta:
“…nascemos no interior desta paisagem, desta pronúncia, deste tempo. A terra tem uma voz, somos capazes de escutá-la. Os sobreiros, sob o peso da sua idade, têm uma voz. Os mortos, gerações encadeadas, têm uma voz. Somos capazes de distinguir todas essas vozes, são levadas pela aragem que também arrasta o silêncio.
Mas andámos por outros lugares, fomos lá longe, cruzámos o horizonte. Atravessámos a planície e, depois, atravessámos o mar. Levámos o que tínhamos aprendido aqui, mas não rejeitámos o que tinham para ensinar-nos lá. E regressámos. Vemos o mundo pelo filtro do Alentejo e vemos o Alentejo pelo filtro do mundo. Somos um coro de sons-palavras-imagens, temos uso para a sabedoria ancestral e para o agora do improviso, do instinto. Sabemos que o mar continua a planície, e vice-versa, um não existe sem o outro, são a mesma coisa.”
“Vagar é um manifesto pela desaceleração.
É uma dádiva, dos músicos para os músicos e para os ouvintes, como contraproposta à velocidade que nos dias de hoje revela o mundo frenético e desalmado que estamos a viver. Inspirado na música e na cultura alentejana propõe uma pausa para a escuta, uma base para a tranquilidade, para respirar e para parar a estranha normalidade dos nossos dias. É também uma reflexão sobre o devir, como sempre foi o vagar alentejano, e é uma proposta alternativa ao papel da música na sociedade actual repensando o seu valor imaterial e espiritual.
A música de Vagar, o vagar difícil de traduzir tal como a saudade, foi escrita como um ecossistema criado de raiz que se inspira na cultura Mediterrânica para juntar o Cante a uma forma livre de compor e de improvisar. É uma conversa entre mundos para ajudar a reflictir sobre o que nos rodeia na luta pela preservação da Natureza cada vez mais em decadência, mais doente. Vagar é, desde a composição em que recompusemos em conjunto novas referências sonoras, uma coexistência que ensaia um diálogo entre ego e colectivo numa sociedade onde as tensões são cada vez mais comuns e difíceis de harmonizar muito graças à vertiginosa e violenta deriva neoliberal.
A coexistência para a cocriação e coevolução, expressas neste trabalho, exigiu contenção, tempo e espaço para resolver essas tensões promovendo saudavelmente o confronto como plataforma para a celebração ritual de algo maior do que cada um de nós.
Vagar é também um gesto para a preservação e reinvenção do Cante. O Cante está vivo neste disco porque estão vivas as suas raízes nas vozes dos cantadores. Se silenciássemos os instrumentos poderíamos escutar o Cante e reconhecer as formas tradicionais com as quais estamos familiarizados. Essa foi a condição para que os cantadores cantassem em Vagar, como uma fronteira habitável que íamos explorando, aprofundando e alargando a cada encontro, até deixar de ser fronteira e passar a território comum.
Vagar é também a consciência plena de que estamos sempre em relação com o universo, questionando a nossa posição através de uma abordagem que arrisca a partir da tradição. Vagar foi feito porque é tempo de escutar o Alentejo e as suas propostas para uma nova vaga para a humanidade. Porque a música de Vagar testemunha a falência dos modelos baseados no antropocentrismo, precisamos de tempo e espaço para recompor em conjunto uma visão holística do mundo, mais cuidada, mais livre e mais humana.
Os encontros para os ensaios em Beja, entre a composição e as vozes foram as minhas viagens do mar para a planície. O meu Alentejo é mais perto do litoral e sinto como Sophia que “quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”. O vagar do mar também está neste disco. Estas viagens entre Lisboa e Beja, quase sempre com paragens em Grândola, estes encontros a partir de Maio de 2023, foram essenciais para a composição e para a adequação das letras ao Cante: porque basta uma sílaba no lugar errado, uma palavra que não permita o vaguear das vozes na respiração colectiva e a música não acontece. Os detalhes foram trabalhados ao limite. Não foi simples este diálogo entre a tradição e o risco, mas foi muito generoso. Todos nos juntámos à volta da ancestral fogueira da tradição oral, como acontece na improvisação, para depois explorar novos caminhos.
Vagar é o meu primeiro disco em que todas as músicas são cantadas.
As vozes que cantam as letras, minhas e do José Luís Peixoto, são centrais na maneira como contam estórias e dão referencias para paisagens sonoras que fui criando quando voltava à solidão da composição. Só depois fiz os arranjos instrumentais e a composição para a voz única do Manuel Linhares e para os maravilhosos músicos que nos acompanham nesta viagem. Estes encontros de Beja são a alma deste disco e sinto-me infinitamente grato pela generosidade deste grupo de amigos cantadores. Não sei dizer quantas vezes aprendi ainda mais depois dos ensaios quando espontaneamente, à volta de uma mesa lá fora, se punham a cantar modas que nunca tinha ouvido e que misteriosamente mudavam a paisagem sonora à volta e me transportavam para outra dimensão.
Soubemos escutar-nos mutuamente e chegar “lá além”.
Nestes ensaios em Beja, ensaiámos as velhas e novas ideias com o grupo Procante, criado para este disco, que inclui 5 jovens cantadores e um sénior que o Hugo Bentes teve a generosidade de escolher a dedo. Os meus dois queridos amigos Pedro Calado e Hugo Bentes, a quem liguei tantas vezes a pedir conselhos e que nos ensaios com simples expressões faciais ou silêncios cúmplices me diziam se estávamos ou não no caminho certo, completam o grupo de oito vozes. Alguns dos mais novos tem formação musical que eu não sabia existir no Cante e tocam instrumentos de corda com um nível bastante alto. É sinal de uma evolução que dará ao Cante a sustentabilidade necessária para se reinventar. Além disso estes jovens, embora abertos a outras experiências, são grandes defensores da tradição que conhecem bem e sabem como preservar. Há esperança para esta música Património Imaterial da Humanidade e que representa tão bem um exemplo de solidariedade e resistência. Por outro lado, venho dizendo aos jovens da música improvisada portuguesa, chamem-lhe jazz ou outra coisa, que têm de sair à rua e escutar as pessoas, os ritmos das suas vidas, os ambientes sonoros que criam e os seus comportamentos expressivos. É nesse pulsar que está a diferença entre música e técnicas que se repetem sem alma. A escuta, o silêncio primordial, é o principal suporte da improvisação em qualquer área das nossas vidas. Em Vagar o nosso segredo foi o de manter o alvoroço inicial com o silêncio a vigiar o clamor do sol ou a veemência da cal até que toda a luz se azula, mal abala o dia, nesse lugar sagrado que é o Alentejo.
As ressonâncias do Cante são misteriosas. A criação artística através da composição revela uma ínfima parte, mas os mistérios são para nutrir, não para desvendar. Escolhi usar ambientes sonoros em contraposição ao Cante, onde as modas pudessem respirar tal como a lonjura de certas paisagens alentejanas, criando outros minimalismos nas estruturas harmónicas e melódicas das composições que integram o disco. Podemos chegar mais longe ainda da próxima vez, mas “o agora é agora”.
A cultura mediterrânica, nas suas variadas geoculturalidades, de onde o Cante e uma certa forma europeia de improvisar certamente derivam, teve aqui um papel fulcral ao inspirar as estruturas musicais, células a partir das quais a escrita musical fluiu juntamente com as vozes. Quis dar esse ambiente ao disco logo na primeira música, Cante Zen, contando uma estória sem palavras que nos leva a vaguear pelas paisagens sonoras do Mediterrâneo, entre o Mar e a Planície, até chegar ao Alentejo. Nessas viagens bons ventos sopraram as letras do José Luís Peixoto e as fotografias do José Manuel Rodrigues. Somos três alentejanos no agora do mundo!”
Carlos Martins
FICHA TÉCNICA - “VAGAR”
Carlos Martins – Composição, Arranjos, Saxofone Tenor
Manuel Linhares – Voz
Alexandre Frazão- Bateria
Carlos Barretto – Contrabaixo
João Bernardo – Piano e Sintetizador
Joana Guerra – Violoncelo e efeitos
Paulo Bernardino - Clarinete Baixo e efeitos
Grupo Procante:
Hugo Bentes
Pedro Calado
Francisco Pestana
Luís Aleixo
Moisés Moura
Francisco Bentes
Músicos convidados:
André Fernandes - Guitarra
João Barradas – Acordeão
Letras:
José Luís Peixoto (nºs 4; 5; 7; 9 e 10)
Carlos Martins (nºs 3; 6 e 8)
Fotografias:
José Manuel Rodrigues
Gravação, Mistura e Masterização:
André Tavares
Design:
Travassos
Fotografias e filmagens de estúdio:
Tiago Milheiro
Vídeo
João Pedro Moreira
Músicas:
Cante Zen (A Fonte)
Rouxinol (Negros do Sado) - tradicional
Ausência Presente
Mar-Planície (Al-Andaluz, pós fado árabe)
Mal ou Bem (Não estou perdido no mundo)
Eternidade (no céu um calor frio)
Esta Voz (esta terra quer cantar)
Mediterrâneo (mães sem Lar)
Alentejo, Terra Inteira
Malgostosa
Extravagante (um rapaz brilhante) - tradicional
Flor de Luz (Évora 2027)
Romã (a romãzeira do meu quintal) - tradicional
Composições: Carlos Martins (excepto as modas tradicionais 2., 11. e 13.)
Arranjos: Carlos Martins (excepto 11.)
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