A alma do novo disco de João Farinha, atento a olhar e acolher a tradição mas ciente e consciente de uma missão que corresponde ao alargar de horizontes e ao ultrapassar de fronteiras, aparece sintetizada em alguns dos títulos que apresenta. Faz a viagem entre as Águas Passadas e o que Será, sem atropelos mas sem receios, sem cedências às modas mas sem confinamento às ortodoxias. Assume os Verdes Anos, explica como é Viver Assim e, por tudo isso, mostra-nos desde logo que é desta forma, com um sábio balanço entre a raiz e a utopia, entre a base sólida e a aventura da novidade, que se consegue chegar Tão Longe. Não receia sequer o aparente paradoxo de ter feito a antestreia logo com a Balada da Despedida, mas numa versão corajosa e digna de atenção e de carinho. Estamos perante um daqueles casos, nem por isso muito comuns, em que o todo é ainda maior do que a soma das partes – cada capítulo de A CONTA QUE DEUS FEZ merece e alcança a vida própria, mas acaba por ganhar ainda mais sentido e maior alcance integrado no conjunto de uma obra que justifica o recurso a uma expressão, que ouvimos amiúde noutros cenários mas que não destoa aqui: a que nos fala de “contas certas”.
Para princípio de conversa, convirá prevenir de forma inequívoca, que estamos diante de uma investida clara, e hoje infelizmente rara, nos domínios, abrangentes, do Fado de Coimbra. Ligado, ainda e sempre, aos princípios há muito traçados pelos eternos, como António Menano, Edmundo Bettencourt, Luiz Goes e José Afonso, depois dilatados por criadores e praticantes como Adriano Correia de Oliveira, António Portugal, Rui Pato, António Bernardino, Jorge Gomes e Francisco Filipe Martins. Sem esquecer – seria impossível e criminoso fazê-lo – a superlativa contribuição do universal Carlos Paredes. Esta lista coincidirá, em larga escala, com a dos heróis musicais do próprio João Farinha, desde cedo mergulhado nas ruas, travessas e escadinhas desta escola musical, tão injustamente subvalorizada por estes dias, quando se olha para o mapa meteorológico musical nacional, sem consciência de que aqui temos direito a uma variação climática apetecível e perene. Há, mesmo com todas as desatenções e injustiças, quem não desista, como acontece com o protagonista. Convicção e prática que não o impedem de analisar bem a questão, como numa entrevista já antiga, mas que se mantém válida: “As pessoas vêem o Fado [de Coimbra] um pouco como vêem os monumentos da cidade – está ali e vamos lá quando nos apetecer, porque aquilo é nosso. E há muita gente que nem sequer lá vai”. Antes fosse...
Espero não estar a exceder competências e âmbitos ao defender que, entre clássicos e novidades – algumas das quais candidatas, com o tempo e com as audições, a “transferir-se” do segundo para o primeiro grupo –, há uma musa que serve de linha condutora, quase de cicerone entre os temas: a própria cidade de Coimbra. Ou, talvez melhor, a vivência que proporciona (e que me leva a penitenciar-me, como mero turista ocasional, por não a conhecer com mais profundidade e continuidade). Também aí, João Farinha pede meças ao mais “diplomado” na matéria. Foi lá que nasceu, e cresceu, e vive, e trabalha. Sem fazer dessa “questão coimbrã” um espartilho, bem pelo contrário.
Foi “baptizado” muito cedo, em termos fadistas, pelo pai, o Dr. João António Farinha – que, sublinhe-se, está presente n’A CONTA QUE DEUS FEZ, em voz e na expressa homenagem que lhe é dirigida no reencontro especial com o Fado dos Passarinhos.
Não se ficou por aí, este João: estudou e aproveitou bem as geografias humanas e artísticas de uma cidade em que se podia praticar natação e voleibol, fazer parte de uma claque de futebol (!) académica mas, sobretudo, começar a correr as capelinhas e a soltar a voz. João Farinha, de resto, desmente aquele anátema lançado sobre os “santos da casa” – a fundação de colectivos, como Aeminium e Grupo Coimbra Ensemble, o avanço de um projecto chamado Fado Ao Centro, que é empresarial mas sobretudo de animação cultural e de “resistência”, todos os passos percorridos a solo, têm como sede,
como base, como ponto de partida, os cenários de Coimbra.
Há um argumento adicional, e que vai muito além do circunstancialismo: além dos apoios instrumentais sólidos, nem todos expectáveis, contidos mas sempre presentes, além do produtor (e também compositor/autor) Tiago Machado, lapidar no abraço ao essencial e na dispensa do supérfluo, algo que vale como ajuda preciosa ao desfecho de A CONTA QUE DEUS FEZ, as três figuras convidadas para que a componente vocal vá ainda mais longe vêm de “nativos” ou, ao menos, de nomes que estão associados a Coimbra. Com a Balada da Despedida, lá descobrimos Ruze, vindo das áreas do Hip-
Hop e do Rap, e que, logo no primeiro encontro, mostrou a diferença entre “fora da caixa” e “fora do baralho”. Além de começar, de imediato, a mostrar que a cartilha não teria lugar no álbum, com tal cartão de visita. Depois, em se soubesse, damos de caras com Mafalda Umbelino, presente em Se Soubesse, cantora “local” e que, para muitos vai transformar-se numa revelação, susceptível de justificar futuras atenções. Por fim, vindo de um dos melhores e melhor sucedidos grupos de pop/rock portugueses, Os Quatro e Meia, surge Tiago Nogueira, e em estatuto duplo: cantor, em Sorri e Amei, e criador, no tema já referido e ainda em Tão Longe. Perante tal “prestação de provas” – ou não fosse Coimbra também uma terra de exames... –, fica a certeza de que o apelo à prata da casa não foi uma “solução”, mas sim uma opção declarada.
Está na hora de uma “balada da despedida”, a destas palavras, que não estou certo de terem feito justiça ao disco que vos espera, A CONTA QUE DEUS FEZ. E, se as contas se fazem no fim, como sabemos, sempre acrescento – eu, que também não sei nada de Finanças – que é bom perceber como um “orçamento de rigor” não colide com uma “economia criativa”, mas sem “engenharias financeiras” nem desnecessárias “cativações”. Cativados, somos sim, por um conjunto de criações que parte de uma convicção para uma poderosa afirmação: o do amor a uma causa, que se traduz em praticá-la bem, sem egoísmos nem abdicações, sem exibicionismos mas sem encolhas.
Quando este álbum chegar ao palco – e são muitos os países onde João Farinha já se mostrou, sempre inteiro na forma como canta, muito mais do que como “embaixador” –, farão o favor de lhe contar, a ele, primeira figura, como foi. Aposto, singelo contra dobrado, que na prova dos nove (que, neste caso, são dez), acabarão por convergir na mesma conclusão a que eu arribei – são mesmo contas certas. Que é como quem diz, boas contas.
JOÃO GOBERN
Julho de 2024
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sexta-feira, 20 de setembro de 2024
NOVIDADES DE JOÃO FARINHA
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