sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

NOVIDADES DE LUCAS/MEDEIROS

"Elena Poena era filha de Março e, nesse mesmo mês, sem dia apontado, vertia-se-lhe uma febre sobre a testa mal fazia nesga o primeiro sol do ano, Desse ganhava logo o arrepio, pois era-lhe natural o engano que é dado a todo o animal com securas de sede e que se aproxima de fonte suspicaz e saída de uma furna, infernal e férrea. Elena hauria todo esse sol; apanhava-o veramente e colhia-o para uma pele que queria parda, mas que só avermelhava até fazer borboto. E não havia maneira de adestrar-se à cautela de uma borra lambida nos membros mínimos e no doce dorso. A dor é feita para nos ensinar a afastar a mão do fuso, mas Poena insistia na apanha do primeiro sol. Do sol do seu mês. Aquele era seu. Também a febre e a pústula o seriam. Por quantas versões são conhecidos os suplícios de heróis caídos e de gente rendida a tentações. Pois Poena não empurrava pedra cabeçuda nem fazia de Tântalo nos banquetes. Não angustiava quando a pedra caía ou quando não. Não tinha a fome de que fogem os manás. Outras teimas, outros castigos. A sua tentação era o sol de Março, sem saber que, não raras vezes, o engano é feito logo nos inícios. Testa molhada em pia baptismal. Assim era aquele lampejo antes do pé-d´água primaveril. Perrice era-lhe signo e sina. E ano houve em que não brilhando o sol de Março, Elena embrulhou-se por todo um estio. Do mesmo modo, via o que queria, ainda que dessa visão se fizesse maior cegueira. A mesma luz que alumia, escurece quando finda; a que aquece galhos escorridos de molha, arde meio mato ou basta balça; e aquele sol que corta a longa invernada, e que promete a primeira ponta de vida, torna tudo torpe de sezão. Assim se foi a filha de Março, torrada e trigueira de teima. E o sol prometeu revinda."

João Pedro Porto
 

Um “breve momento lúdico” de Medeiros/Lucas a caminho do “Sol de Março” from Público on Vimeo.

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