"Admiramar
Desde o seu Prelúdio que a música de Peixe e Frankie Chavez parece propor um tipo de sobrevivência harmónica oriunda de um duelo ao sol de guitarras. Se a guitarra tem sido um instrumento cada vez mais explorado numa recente musicalidade portuguesa, o seu carácter tendencialmente zeloso poderia afirmar-se pouco complacente num registo quatro mãos, como se a espacialidade aprofundada na câmara de ressonância tolerasse pouco uma solidariedade de iguais. Contudo, o carácter predador da guitarra patente nesse nervosismo existente na tensão dialógica que a dupla pratica vai-se dirimindo numa simbiose de responsos articulatórios, os quais se alimentam de espacialidades várias, como vento para o pensamento.
Se o exercício de ler nos nomes das faixas de Miramar II é cair num tipo de falácia que faz com que a música seja paradoxalmente lida a partir de chaves de leitura literária, a verdade é que a abertura da música de Peixe e Chavez aponta para lugares de evasão, de Estocolmo a Lisboa, atraindo o ouvido a uma interpretação, a uma sugestão. A errância é apreendida no carácter compósito dos instrumentos, tornando multidialectal a experiência de errância, a exemplo justamente da convivência entre diversos registos de guitarra, desde a steel guitar à guitarra portuguesa. Se este é um disco espacial, ou de uma certa espacialidade, talvez o seja porque a ausência de voz obriga a um abandono cinematográfico que aconselha à imposição de lugares na ausência dos corpos.
A presença militante de guitarras, o seu desdobramento, parece esta, assim, por uma ausência, de onde as cordas serão as presenças in absentia e abstractas de um tipo de chiado de almas que habita os espaços em memória, senhores de pedra, frios e inamovíveis, após a passagem das almas. As guitarras são também um tipo de voz de sibila que se eterniza nos filamentos exauridos da sua memória. É aqui que se torna interessante a convocação de outro tipo de cordas, as de Mário Laginha, que traz a Recolher um tipo de lacrimosa à tensão mais austera das guitarras.
A música de Miramar, sendo experimental, requer ouvidos tipo búzio, afeitos a escutarem um mar de guitarras mais evocativo do que real. Ela é um laboratório de lugares, um tipo de viagem à volta de um quarto, e o seu desdobramento cénico uma virtude da sua tensão. Dir-se-ia ser este tipicamente um país pequeno para dois solistas, não fosse este um espaço de fuga de dois paisanos, duplicado por dois horizontes únicos de paisagem. "
Daniel Jonas
"Recolher" conta com a participação do pianista e compositor Mário Laginha.
Ironicamente, a pandemia acabou por facilitar este encontro, uma vez que na altura em que o single foi gravado as agendas dos músicos e do próprio estúdio, estavam bastante mais disponíveis do que aquilo que seria normal em tempos pré-pandémicos. Reunidas assim as condições para esta colaboração, o tema "Recolher" resultou de um curto mas intenso encontro, em que as guitarras dos Miramar se cruzaram com o piano de Mário Laginha de forma surpreendentemente fluída e orgânica.
"Quando estávamos a criar o arranjo para o tema 'Recolher’ ocorreu-nos que a introdução de um piano poderia levar o tema para uma dimensão mais poética e profunda. Lembrámo-nos imediatamente de convidar o Mário Laginha e um par de dias depois ele respondeu positivamente ao nosso convite. Combinámos então gravar a sua parte nos estúdios CARA/OJM em Matosinhos, com o João Bessa que já nos tinha gravado anteriormente no seu estúdio em Miramar. O Mário fez alguns takes e curiosamente foi o primeiro que ficou na versão final do tema." refere Frankie Chavez.
O vídeo que acompanha o lançamento de "Recolher", realizado por Jorge Quintela, é composto por imagens captadas durante as sessões de estúdio em que o tema foi registado.
Sem comentários:
Enviar um comentário