segunda-feira, 30 de novembro de 2009

PRIMEIRO CD DE SAMUEL ÚRIA




“Nem lhe tocava”


Se António fundia Braga e Nova Iorque, Samuel atravessa Dylan e Paião, Vitorino e Waits. Se Variações soube pôr mundo no Minho, Úria põe este mundo no outro, e o outro neste, e tudo em breves canções orelhudas. Mas, por favor, nada de mal-entendidos. Este artista é de sínteses, não é sintético. Isto é música muito humana, de carne e osso, verdadeira e impura, cordas, respirações, arranhões, falsetes. Um cantautor a sério a brincar com o seu tesouro. O quê, nomes, História? Bem, vamos a isso: Zeca Afonso, António Variações, Sérgio Godinho e – Samuel Úria. Sim, isso mesmo. E não, não é nenhum “por exemplo”.

Esta música não tem medo de atacar o clichê mesmo no meiinho, naquele ponto onde ele é mais sensível. Vira-o, desvira-o, reinventa-o de tal maneira que, quando damos por nós, estamos a olhar-nos ao espelho destes monumentos disfarçados de coisa respigada. Para os alternativos, fica o aviso: não se assustem com o aparato de produção, não há aqui nenhum “compromisso”, nenhuma “cedência”. Pelo contrário, este “Nem Lhe Tocava” (que título do caraças, meu) é objecto perigoso, perigosíssimo. E, para os convencionais, só um recado: ouçam sem preconceitos, sem pressas, com a calma possível, no meio do mundo, e depois vejam que tal. Em verdade vos digo, Samuel Úria é tão bom que devia ser proibido. Ele compõe, escreve, toca, canta, teatra, arranja, dispara mais rápido que qualquer sombra, faz tanto e tudo bem. Mais que bem, brilhantemente, incrivelmente, genialmente, despretensiosamente. Mas, pois, não me puxem pelo advérbio.

Podia falar de “Não arrastes o meu caixão” – quando primeiro a ouvi, arrisquei que era um fado-spaghetti, agora não sei se não será mais um western-sarrabulho – ou de “Rua da Fonte Nova, 171” – um ar-de-blues ao mesmo tempo comovente e contido – ou de “Teimoso” – sucesso pop em falsete fabuloso que põe Beck e PREC na mesma faixa –, mas, num disco destes, é demasiado difícil escolher só uma canção, só duas, só três. À volta de “Nem lhe tocava” devia haver uma fita vermelha com o aviso: aqui há mesmo 12 canções.

Não, para falar desta grandeza, temos de nos socorrer dos clássicos, não há hipótese. Samuel Úria diz-se “músico ligeiro”, mas o facto é que estas canções conseguem, e citemos Drummond, “erguer-se em arco sobre os abismos”.

Jacinto Lucas Pires

Alinhamento:
1 – Nem lhe tocava
2 – Não arrastes o meu caixão
3 – Fel
4 – Rua da Fonte Nova 171
5 – Teimoso
6 – Água de Colónia da Babilónia
7 – No cover
8 – Lamentação
9 – O Diabo
10 – Batuta e batota
11 – Império
12- Ao Tom Dela

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