terça-feira, 15 de dezembro de 2009

NOVO DISCO DE RICARDO ROCHA





Denomina-se de Luminismo a técnica pictórica associada a um conjunto de pintores norte-americanos de finais do século XIX. Uma espécie de movimento apócrifo que descreve essencialmente características comuns observadas na arte paisagista de Martin Johnson Heade, Fitz Hugh Lane, Frederic Edwin Church ou Sanford Robinson Gifford. Une-os um delicado tratamento da luz, a exploração de atmosferas contemplativas conseguidas através de traços precisos e da eliminação das marcas de pinceladas, a sugestão de superfícies lisas e quase acetinadas – nas quais qualquer contraste assume uma dimensão espiritual – ou, ainda, a sedução por um mundo natural em que os fluxos se suspendem em ambiências capazes de, no limite, perturbar pela sua impessoalidade. Distingue-se na soma destas obras uma propriedade meditativa mas nem sempre pacífica, determinada por elementos refulgentes que simultaneamente coloram – e resistem a – representações da mais tranquila aparência.

Esta poética definição não explica tudo, mas dirá qualquer coisa de importante sobre as composições de Ricardo Rocha. É certo que à primeira vista talvez as turve mais do que aclare, mas a sua audição permite retirar-lhe uns quantos véus. Porque a referência a uma era distante desta que as vê nascer é só como uma neblina matinal. E à partida, no que é uma ideia central em “Luminismo”, esclarece que apenas por uma enorme ausência revelam estas peças para Guitarra Portuguesa no CD I sintomas de modernidade. Quando o seu paradigma será outro: o da recuperação do tempo perdido.

sto é: Ricardo Rocha sabe melhor que ninguém que a sua linguagem não deriva de nenhuma escola. Muito menos pretende espelhar a contemporaneidade – em última instância porque esta lhe parece inexistente. Tivessem sido as coisas diferentes e, quem sabe, talvez no dealbar do século XX se houvesse verificado um interesse de compositores e académicos por este instrumento popular: tendo-se criado métodos, escolas, obras, escrito livros, desbravado caminhos, alargado horizontes. Mas não: independentemente da qualidade dos seus instrumentistas, a Guitarra Portuguesa não encontrou espaço para se desenvolver fora do campo estrito do fado. E a carência de um repertório solista consagrou-a a funções específicas de acompanhamento. Olhando para trás, perante o campo de possibilidades interpretativas e composicionais que os avanços estéticos e técnicos do último século testemunharam, há mágoa que assim tenha sido. É trágico e quase absurdo e ainda assim um milagre que se reconheçam excepções: Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral, que Ricardo interpreta mas de quem tanto difere, procuraram uma espécie de ‘terceira via’ para um veículo que reclamava a dignidade de poder um dia exprimir directamente novas ideias. Por isso, parte de “Luminismo” é quase um lamento e uma saudade por tudo aquilo que não foi. Uma invenção do passado. Mas é também, sempre e sobretudo, um exclamativo processo que irradia luz sobre o invisível: sobre esta coisa de, hoje, na Guitarra Portuguesa, pouca gente fazer eco destas preocupações, de permanecer uma incógnita o seu futuro, de sustentar-se sempre com o mesmo o seu corpo.

“Luminismo”, agora na soma dos seus dois discos, despido da pretensão que lhe atribui a inevitabilidade factual e antes que o arruíne qualquer reflexão, é um arroubo sensual. Tudo nele se inscreve como um arrebatamento. As melodias perseguem ou invadem-se por imagens. Estão, por vezes, saturadas de cor, noutras tornando exacto o contraste que melhor as traduz. Adivinha-se uma obsessiva luta em busca de tanta clareza. Num equilíbrio de dramática fragilidade, expressam ideias complexas e oferecem soluções sensorialmente desarmantes. As peças para piano, interpretadas por Ingeborg Baldaszti, referenciam directamente Scriabin e o Serialismo: e é verdade que encerram as primeiras o mistério do russo e as segundas a rigorosa determinação que se associa por exemplo ao Pierre Boulez de inícios da década de 50. De certa forma, ajudam a desvendar alguns dos segredos das peças para Guitarra Portuguesa. Mas não são umas consequência de outras. Justificam as de piano a frase tanta vez repetida por Ricardo de que é esse o seu instrumento preferido. E, no que é tanto um triunfo quanto uma desgraça, sublinham a impressão superficial de que reagem mais as de Guitarra contra correntes tradicionais: apenas por nessas se pressentir o vazio da História.
Na realidade, “Luminismo” é como uma cápsula afundada em nostalgia. Um enlevo que sintetiza tanta música que parece só fazer sentido dentro das suas mais densas correntes. Não devia ser tão único, mas é. Lidemos com isso.

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