A próxima edição da Holuzam é uma atuação ao vivo, nunca antes editada, de Anar Band com E.M. de Melo e Castro que foi filmada pela RTP e transmitida no programa "Obrigatório Não Ver", apresentado por Ana Hatherly, em 1979.
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No texto mais abaixo tenta-se explicar conteúdo e algum contexto, e nestas linhas iniciais sintetizar a intenção e o entusiasmo.
Como parte de uma operação faseada para recuperar a música de Telectu, que inclui algumas reedições de discos do grupo e, mais extensivamente, um trabalho de investigação que esperamos publicar em livro, chegou-se a esta actuação de Anar Band (então Jorge Lima Barreto e Rui Reininho) com Ernesto de Melo e Castro, exemplo raro, na junção imagem-música, da vanguarda artística portuguesa na década de 1970. Mesmo descontando o facto de se poder questionar sempre o que é a vanguarda, este documento existente no arquivo da RTP mostra de forma evidente um exemplo de acção paralela ao que sempre foi o mundo estabelecido da Arte. Pode até chamar-se-lhe activismo, uma vez que este tipo de eventos aconteciam por associação espontânea ou amizade, para além de uma convergência de intenções e crença inabalável em caminhos subterrâneos que se desejava serem melhor iluminados.
Acreditamos também poder contribuir para essa melhor iluminação, sempre muito esquecida ou activamente ignorada pelos agentes de superfície. A edição deste disco procura colocar em circulação música (e a poesia associada) que comunica vitalidade, risco, avanço e confiança. O som comunica isso. A aspereza da gravação comunica isso. Seria lamentável suavizar o que não era suave.
Como feliz complemento, a Cinemateca programou para todo este mês de Novembro a primeira parte de um Ciclo de Cinema Experimental Português, no âmbito do qual será exibido o filme-concerto correspondente a este disco. Imagens e montagem originais da RTP Porto, agora possíveis de visionar em ecrã grande.
Dia 13 de Novembro, às 19h30, Sala M. Félix Ribeiro, Cinemateca de Lisboa.
- Nesta gravação, Anar Band foram Jorge Lima Barreto e Rui Reininho;
- E.M. de Melo e Castro interpreta poemas de sua autoria;
- Transcrição áudio a partir de filmagens realizadas pela RTP e transmitidas em Fevereiro de 1979 no programa "Obrigatório Não Ver", apresentado por Ana Hatherly (Segundo Canal, actual RTP2);
- Masterização áudio por Taylor Deupree, 2025.
- Disponível em LP a 30 de Janeiro de 2026.
Áudio parcial de um espectáculo realizado por Anar Band (Jorge Lima Barreto e Rui Reininho) com E.M de Melo e Castro, em Novembro de 1978, na Cooperativa Árvore, Porto. Filmado pela equipa da RTP Porto e transmitido em 18 de Fevereiro de 1979 pelo Segundo Canal da RTP no programa Obrigatório Não Ver, apresentado por Ana Hatherly.
O episódio chamou-se Músico / Texto, com subtítulo Poesia e Música Experimental Electrónica. Não foi possível, através dos arquivos da RTP e da Cooperativa Árvore, determinar a data exacta do evento nem conseguir documentação sobre o mesmo.
"Encontro que Tenho" e "Profissões" são títulos atribuídos para esta edição. Não tendo sido localizados os respectivos poemas após consulta minuciosa da obra de E.M. de Melo e Castro, deduziu-se que seriam textos criados para a ocasião.
Mesmo sem o contexto certo explicado em profundidade, o som transmite bem o espírito de agitação cultural de que estas sessões se revestiam. Em Novembro de 1978, quando aconteceu a actuação ao vivo que é objecto da presente edição, o Anar Band estava cristalizado em Jorge Lima Barreto (sintetizador ARP Odyssey) e Rui Reininho (guitarra Ibañez de dois braços), uma parceria então com dois anos e meio, e acrescentado da presença e voz de E.M. de Melo e Castro, que aqui se apelida de poeta (porque é a sua poesia que escutamos no disco) mas cuja intervenção criativa foi mais vasta. Não apenas no âmbito da poesia e da ligação entre artes, mas também no campo da engenharia têxtil e, ao seu modo, na permanente agitação de mentes e consciencialização política.
Boa evidência na última das peças incluídas no disco, que identifica profissões que primeiro são estanques e depois se interligam, mostrando a interdependência entre áreas laborais diferentes, mudanças de posição, capacidade de intervir em áreas alheias à formação de base. Opera-se através das palavras uma transformação na sociedade, embora em duas instâncias se reforce a ideia de que o lucro vai sempre parar às mãos do industrial.
Era esse estado de coisas que se procurava mudar, um mal-estar económico e social que o 25 de Abril veio definitivamente revelar, quando as vozes já podiam ser escutadas alto e em público. Cada um ao seu modo, todos os intervenientes nesta gravação eram descrentes na estruturação da sociedade tal como esta se apresentava.
Através dos seus livros e escritos na imprensa, Jorge Lima Barreto insinuava-se no meio crítico e artístico nacional, sobretudo na área do jazz, desde o final dos anos 1960. De livre vontade e involuntariamente, coleccionou inimigos que apontava pelos nomes, gente que na sua escala contava como reaccionária, gente que atrasava o progresso, a mistura, a vanguarda, atrasava até o caos a partir do qual se criam novas formas e atitudes.
Rui Reininho viveu em directo, e na pele, o inconformismo e incompreensão, desde muito novo. A sua tendência natural para a anarquia e o desconcerto revelava-se nas roupas, atitude pública, performances "na vida real", não-alinhamento convicto. Tal como JLB,e mesmo os dois em conjunto, divertia-se a provocar os extremos: maoístas de um lado, reaccionários do outro. Traduziu livros carregados de Esquerda e juntou-se oficialmente ao pré-existente grupo Anar Band precisamente no concerto em que um pato, um cisne, um ganso (um deles) foi lançado para o palco na Faculdade de Economia do Porto, em Maio de 1976.
Tal como os extremos se tocam, digamos que os estranhos se conhecem. Muitas associações proveitosas que geraram eventos como este concerto de Anar Band + Melo e Castro na Cooperativa Árvore fizeram-se no improviso do submundo pré-Revolução, quando se procuravam almas gémeas capazes de alimentar em conjunto uma rede de sobrevivência anímica a precisar de constante reafirmação.
Mas mesmo no Pós, o submundo estético continuou a sê-lo, ainda que já na superfície da agitação política e social do PREC, na camaradagem de quem se reconhecia do mesmo lado, agora tudo às claras, e a arte produzida nesse submundo chegou às Bienais, ao estrangeiro, a acontecimentos de rua que, em liberdade e com naturalidade, se multiplicaram.
Só que o vento passou, e o que era "estranho" permaneceu "estranho", frequentemente prejudicado pelas forças democráticas do mercado e dos media. Em relação aos tempos de ditadura, com certeza mais espaço para intervenção, mais liberdade de movimentos, mas semelhante falta de elasticidade em mentes que decidiam assuntos, dinheiros, exposições, destaques.
Este disco mostra uma acção concreta, um instantâneo da agitação, algo a que chamamos sem pudor, até por certa coincidência cronológica, um activismo punk que permitiu que duas pessoas sem formação musical académica (Barreto e Reininho) fizessem e publicassem música. O LP de Anar Band, que corresponde grosso modo a esta fase musical, fora editado em 1977. Na presente actuação, evidentes também alguns códigos da música improvisada: a escuta mútua que se detecta nos olhares captados na filmagem original da RTP, os compassos de espera até ser conveniente intervir de novo (no caso de Melo e Castro) ou mudar o tom no sintetizador e na guitarra (Anar Band); o modo como Reininho toca a guitarra.
Fascinante e alienante.

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